O problema da escassa transferência para a sociedade e economia que a nossa ciência e tecnologia tem operado é sobejamente conhecido e debatido, não obstante o nível de excelência e projeção internacional que conquistou em varias áreas. O European Innovation Scoreboard da União Europeia para Portugal ilustra bem este ponto, mostrando que Portugal tem uma performance abaixo da média europeia em quase todos os aspectos da inovação.
Um sistema de C&T só é verdadeiramente maduro quando consegue cobrir o espetro que vai da investigação mais básica, mais fundamental, até aquela gera competitividade nas empresas e emprego. É neste último extremo que como país temos sido pouco eficientes. É fácil pensar, como é comum na academia, que o problema está na nossa indústria que é pouco inovadora. É igualmente fácil para quem está do lado da indústria, culpar os académicos por não fazerem investigação “útil”. Penso que ambas as perspectivas, malgrado serem bastante comuns, estão profundamente erradas, e por não se identificar o problema correctamente, torna-se difícil resolvê-lo.
Por coincidência de no meu percurso profissional me ter encontrado dos dois lados da barricada, como investigador académico com investigação básica no Instituto Gulbenkian de Ciência, e como empresário numa empresa de biotecnologia, a Ophiomics, acabei por me aperceber do fosso entre os dois mundos, e por isso escrevo este texto. Há muitos aspectos que separam estes dois mundos, mas aqui vou focar-me apenas na noção de risco. Há um enorme contraste entre nível de risco associado a uma “descoberta” que que sai da academia e o risco aceitável para um privado, empresa ou investidor, apostar num ideia para gerar uma “inovação”, i.e. um novo produto ou serviço no mercado. Exemplifico com uma experiência própria, de no passado ter estado envolvido no desenvolvimento de um novo tipo de fármaco, já usado em humanos, como uma nova classe de antibióticos. A história começa com uma previsão bioinformática que depois validámos experimentalmente em cultura de células, confirmando a previsão de que esse medicamento era um poderoso antibiótico. Uma das previsões e teste foi feito numa bactéria responsável por uma infecção em animais de carne da qual uma resulta uma perda de peso do animal, com custos elevados para a indústria. Ora quando abordámos essa indústria com a nossa “solução” percebermos que da perspectiva da indústria o problema é que os animais perdem peso, não é que tem uma infecção bacteriana, pelo que até nós termos demonstrado que ao administrarmos o fármaco ao animal infectado que que este recuperava peso, havia um risco inaceitável associada à nossa proposta. Claro que de uma perspectiva académia, desta investigação “translacional”, estava demonstradíssimo que fármaco era um antibiótico, e como tal devia funcionar!
O que fazer então para mitigar este problema? Em minha opinião falta uma investigação aplicadíssima, para além da dita investigação “translacional”, em que identificando-se os vários pontos onde a tradução pode correr mal, se desenvolve um projeto que testa premissas, cenários e processos ao ponto onde a ideia é considerada suficientemente segura/de baixo risco para um investidor privado e/ou uma empresa acreditar nela. Esta investigação é muito pouco interessante no contexto da academia, seja do ponto de vista intelectual, seja porque frequentemente não gera mais ou melhores publicações científicas, a métrica pela qual os investigadores académicos são avaliados, de onde dificilmente podemos esperar que seja a nossa academia a faze-la. Por outro lado, a indústria, por razões diversas, umas compreensíveis, outras menos, é extraordinariamente avessa a assumir riscos. De onde que, havendo risco, não apostará em desenvolver esta investigação. Temos por isso um fosso entre estes dois mundos associado ao risco. É necessário fazer algo que na língua inglesa tem termo próprio, que é o de-risking.
Este problema não é exclusivo de Portugal, e na realidade foi identificado em alturas diferentes em diferentes países, tipicamente na Europa e Ásia. A solução encontrada para este problema do de-risking tipicamente passou pela criação do que genericamente se apelidam de TICs – Technology Innovation Centres. Estes são centros de investigação aplicadíssima, e que têm características muito semelhantes nos vários países onde são implementados: são focados em domínio tecnológicos muito específicos, operam sob lei privada, têm um modelo de financiamento misto de “core funding”, tipicamente estatal, de contract research e de desenvolvimento de projectos, financiados competitivamente, em colaboração com empresas e academia, com objetivos de gerar propriedade intelectual e valor. Bons exemplos são a rede Fraunhofer alemã, ou o SINTEF na Noruega. Exemplos mais recentes são o programa CATAPULT no Reino Unido e o BioAsterFrancês, que sendo concebidos muito recentemente seguem a mesma lógica dos que já estão estabelecidos há mais tempo.
A área das Biociências é a aquela onde tenho sempre trabalhado, pelo que é para mim mais fácil explicitar ideias, sendo que noutras áreas tecnológicas os mesmos formatos fará sentido, como é óbvio pelos exemplos internacionais. Nas ciências sociais é para mim menos óbvio se este formato faz sentido, embora em minha opinião a possível inadequação do formato não previne a igual necessidade de também nestas se apostar numa estratégia criação de valor económico e social. Nas Biociências, não obstante a projeção internacional e excelência que se alcançou em vários pólos académicos do país, para mim é óbvia a ausência de instituições com vocação e capacidade para fazerem o de-risking da investigação, para a tornar “investível” e aproveitável pelos privados. Em minha opinião, o estabelecimento de plataformas de de-risking de biotecnologia, bioprodutos, bioserviços em Portugal é uma necessidade,nomeadamente nas biotecnologias marinha, industrial, agro/florestal, alimentar, ambiental, biomedicina/saúde, etc.
Tendo-se identificado o problema, e as soluções que tipicamente se procuram, haverá várias maneiras de tentar potenciar o de-risking da Ciência em Portugal. A mais óbvia é a de ir buscar quem já faz bem, noutros países para fazer cá também. Na realidade já temos um centro Fraunhofer no Porto (Fraunhofer Portugal Research Center for Assistive Information and Communication Solutions). Alternativamente, ou em paralelo, podemos pensar em criarmos nós as nossas soluções, de novo, ou a partir de instituições já existentes. Penso que há alguma vantagem no estabelecimento de centros de iniciativa nacional, por terem o potencial de envolverem diretamente as empresas Portuguesas. Há também a feliz coincidência de haver um forte ênfase na inovação empresarial nos fundos estruturais e no Horizonte 2020, e de algumas áreas das ciências da vida, nomeadamente a área da Saúde e do Mar, serem áreas de especialização inteligente Portuguesas e grande prioridade dentro do H2020.
Penso que Portugal tem uma oportunidade de estabelecer um TIC na área da Saúde/Biomedicina. Acredito que será possível envolver fortemente o setor privado que opera na área da saúde e bem estar no estabelecimento deste TIC, que poderá assim ser uma instituição essencialmente privada, ainda que possa e deve trabalho em parceria com instituições do sistema científico e tecnológico nacional. Fiz daqueles back of the envelope calculations onde tudo parece simples e um modelo de negócio provisório aponta para orçamentos relativamente contidos e uma sustentabilidade parcial já garantidos com serviços para os quais há clientes ativamente à procura de soluções. Estou convencido que este projeto é exequível e pode ser um exemplo de colaboração entre empresas em Portugal, e eventualmente entre o setor privado e público, se assim o entenderem desejável. Estou também convencido que o sucesso deste e/ou de outros projetos de TICs em Portugal representará uma ferramenta de internacionalização das nossas empresas, bem como um instrumento de diplomacia económica e científica. Mais ainda, para além da criação de emprego científico no setor privado, estou convencido que estes TICs podem ser concebidos para terem forte impacto social. No caso da saúde, o envolvimento das associações de doentes enquanto atores importantes na identificação das necessidades “do mercado”, definição de comunidades de beta testers/early adopters ou angariação voluntários para estudos é um exemplo óbvio de como se podem casar os interessas da investigação, das empresas e das pessoas cujas necessidades ultimamente se quer resolver quando se desenvolve atividade na área da saúde.
Quero que seja claro que não defendo o aplicado em detrimento do fundamental, e muito menos defendo que a academia deve trabalhar para a indústria, ideia peregrina que políticos de múltiplas cores têm defendido. Pelo contrário, para mim é indispensável continuarmos a apostar na investigação básica, em todas as áreas do saber, e numa óptica de desenvolvimento científico do país todo, e não de apenas algumas instituições. Estou sim convencido que a nossa aposta nacional na Ciência, bem como a simpatia que os Portugueses tendem a nutrir pela procura do conhecimento, se tornará mais sustentável e mais mais central na vida dos Portugueses se apostarmos em extender o nosso tecido de C&T do fundamental até à economia. Um sistema de C&T só é verdadeiramente maduro e sustentável quando consegue cobrir o espetro que vai da investigação mais básica, mais fundamental, até aquela gera competitividade nas empresas e emprego.