Tenho a percepção que que poucos doutorados em ciências da vida em Portugal estão a sair da academia para ir montar empresas, e é sobre este tema, que me preocupa, que escrevo este post. Esta declaração não é quantitativa nem baseada numa análise sistemática e profunda de todos os casos de empreendedorismo em Portugal, mas resulta de uma experiência pessoal. Nos últimos anos tenho andado pelos mundos do empreendedorismo, como “praticante” mas também em papéis de suporte, trabalhando numa incubadora de empresas (Healthcare City), fazendo due diligence para investidores, participando em processos de seleção de empresas para programas de incubação e aceleração, como mentor de alguns projectos, entre outras actividades. Esta experiência dá-me algum conhecimento de causa, por ventura algo enviesado geograficamente para a região onde trabalho, da grande Lisboa, mas que creio não ser errado por isso.
Nesta altura em que o empreendedorismo se tornou uma obsessão, e que se espera que todo e qualquer indivíduo tenha em si a energia e imaginação para ser um novo Steve Jobs, nos corredores desta nova religião passam rapazes e raparigas cheios de energia, com ideias para novas apps, com serviços diversos, e com o ocasional conjunto de procedimentos ou instrumento (devices) de medição de qualquer coisa – eletrónicas e detetores, normalmente. O que vejo muito pouco, são novos produtos de base biotecnológica, seja para produção, processo, terapia ou deteção, independentemente do contexto. Mais ainda, apenas uma minoria das equipas que tenho visto com propostas de negócio vêm da academia, doutorados ou doutorandos, para transformar saber em valor para a sociedade. Isto contrasta com a exuberância do setor em países como os Estados Unidos da América que estabelecem dezenas de milhares de empresas que empregam muito mais do que um milhão de pessoas altamente qualificadas (por exemplo, este estudo da Battelle/Biotechnology Industry Organization)
Como se produzem em Portugal, e bem(!), mais doutorados do que a academia pode absorver, e como há pouquíssimo emprego para doutorados no tecido empresarial português (e mal!), como atestado no estudo de 2015 “Empregabilidade dos Doutorados nas Empresas Portuguesas” (PDF aqui), realizado pela Advancis Business Services (com financiamento público), seria lícito pensar-se que haveria algum incentivo para que indivíduos com treino em pensar, que são os doutorados e doutorandos, nomeadamente os das ciências da vida, olhassem à sua volta e das necessidades que testemunham procurassem soluções com base nas suas competências técnicas. Mais ainda, tendo havido uma significativa redução de bolsas de pós-doutoramento nos últimos anos, seria de esperar que o incentivo para a criação de empresas em biotecnologia fosse ainda maior. Claro que isso não aconteceu, e não houve nenhum crescimento visível de empresas de biotecnologia sensu lato. Mesmo que tivesse havido, um trabalho académico diz-nos que dificilmente teria sido produtivo para o país. Neste estudo, investigadores da Universidade de Coimbra propõe que o empreendedorismo em Portugal é essencialmente “de necessidade” e não “de oportunidade”, resultando em pouco contributo para o crescimento económico português (ler artigo do Sol aqui).
Preocupa-me muito que na área das ciências da vida, área em que trabalhei toda a minha vida profissional, vejamos tão poucas ideias a serem transformadas em empresas. Se o problema não é, como vimos acima, falta de incentivo, qual pode ser então? Várias razões concorrerão para esta situação, envolvendo financiamento, infraestrutura, acesso a mercados, entre outros, mas aqui falarei apenas de uma que tem a ver com os cientistas – na perceção errada do que é montar uma empresa por parte dos nossos doutorandos e post-docs académicos.
Misto do meu entusiasmo pela criação de valor, da minha preocupação de falta de iniciativa nas ciências da vida, e do papel de mentor académico, tenho conversado com imensos doutorandos e doutorados sobre as suas carreiras, ideias e o salto da academia para o empreendedorismo. Tenho-me apercebido que normalmente há um conjunto de preconceitos que importa desmistificar. Os “medos” ou “recusas” que mais tenho ouvido são:
– É financeiramente instável – não vou contestar, é verdade. Mas vou contrastar com a estabilidade financeira que temos em doutorados nas ciências da vida, que cerca de metade têm vínculos precários na base de bolsas cuja número varia de acordo com preconceito político e ditames da economia. Um qualquer plano de negócio implica a planificação de salário(s) e a obtenção desse financiamento, seja por investimento externo, ou na base de poupanças próprias, de tal forma que o indivíduo sabe que tem n meses durante os quais tem o seu “salário” garantido e durante o qual tem que executar um plano de trabalho. Não muito diferente de uma bolsa,… Não há muito tempo dizia-me uma doutorada que não pode ir fazer empresas porque tem uma filha para sustentar, mas esta mesma doutorada tinha menos de um ano de bolsa assegurado e estava dependente da abertura de concursos para poder concorrer a alguma outra bolsa, que em qualquer caso nunca aconteceria a tempo de prevenir que ficasse sem bolsa durante meses – porque será que neste caso o empreendedorismo parece ser menos estável?
– É arriscado, pode falhar – é verdade, dizem os estudos que menos de 10% das novas empresas em biotecnologia vão ser bem sucedidas, mas estes números começam a aproximar-se de serem um urban myth que é reproduzido nos cafés e escolas de negócios, com poucos dados que o fundamentem. Na realidade, e usando apenas dados relativos a novos fármacos que chegam ao mercado, empresas publicamente cotadas tem uma taxa de sucesso de cerca de 20% (!!) (por exemplo, este mini-relatório da avance). Para aqueles que pensam que a biotecnologia é um mau setor, de grandes risco e poucos retornos, da perspectiva de investidores, essa não é a visão, como é bem articulada neste neste post do Brice Booth, um early stage venture capitalist, no seu Life Sci VC blog. Comparemos agora a realidade da investigação científica – quantos projectos com ambição de resolverem um grande problema ou responderem a uma grande pergunta sucedem? São mais de 10%? Eu não conheço estudos específicos sobre este tema, mas de uma forma intuitiva e olhando para a minha carreira e dos meu colegas mais próximos, diria que embora seja comum levarmos projectos a bom porto, ou seja, até ao ponto da publicação, muito poucos são aqueles que cumprem as expectativas iniciais.
– Gosto da fazer investigação, não de negócios – Fazer negócio é uma ideia pouco apelativo para quem faz ciência. Isto, tento desconstruir, porque implica andar continuamente à procura de investidores, ter que vender continuamente e procurar clientes, garantir que os projectos estão decorrer como planeado e que estão a ir na direção que se deseja, por exemplo da finalização de um produto para o mercado ou de um plano de vendas. A investigação científica não é assim… bom, na realidade é exatamente igual, exceto que os mais jovens, aqueles de quem se espera que tenham menos medo de dar o salto da criação e valor, ainda não tiveram que viver o que é realmente viver na ciência – estar permanentemente a escrever grant applications, andar de congresso em congresso a vender o nosso trabalho para poder facilitar a revisão dos papers e das grants, fazer muito networking para poder participar em grants colaborativas, andar sempre em cima de estudantes e post docs, alguns fenomenais, muitos pouco profissionais e que acham que deixar para amanhã is good enough, etc. Estando hoje a trabalhar dos dois lados, não vejo diferenças substanciais entre estes dois mundos, sendo que a única que me parece legítima, é que investigar sobre a origem dos eukariontes, tema que me fascina, é mais interessante do que investigar um nicho de mercado para novos testes diagnóstico, em que tenho que estudar a ciência desse campo, a prática médica e o mercado ao mesmo tempo, mas qualquer dos dois me dá a satisfação da investigação, de começar com perguntas e obter respostas. Claro que para os mais jovens, a visão de que “fazer ciência” é pensar sobre um tema, profundamente, durante muitos anos, sem ter que se preocupar em financiar este trabalho e sem ter nenhum tipo de avaliação externa (com consequências) – parece perfeitamente razoável…
– Não saberia como – este é talvez um dos comentários mais frequente que tenho ouvido, e o que mais me surpreende, pois a internet dá-nos acesso a todo e qualquer tipo de conhecimento que desejemos. No que diz respeito a montar negócios, seja de uma perspectiva generalista, seja focado num setor muito específico de actividade, há um sem fim de recursos, uns mais superficiais, outros mais profundos. Existem hoje múltiplas séries de reality TV à volta do tema de montar ou recuperar empresas, muitos deles disponíveis gratuitamente no Youtube (eu pessoalmente fui e sou grande fã do Dragon’s Den britânico, onde me parece que o feedback dos Dragons é mais informativo do que num Shark Tank, onde se privilegia mais o espetáculo). Mas para isso, claro está, é preciso procurar, é preciso estudar o tema, algo que não deveria ser difícil para doutorados e doutorandos.
– Não posso voltar para a academia, ou mais genericamente a questão da empregabilidade – Tenho encontrado ao longo da minha carreira muitas pessoas que saíram da academia, trabalharam na indústria, e depois voltaram à academia. Em Portugal, vários dos empreendedores que fundaram empresas de algum impacto estão hoje como professores convidados em várias universidades, a ensinar empreendedorismo. Em Portugal não conheço casos onde se tenha voltado para a investigação académica, mas aqui parece-me, e sublinho que se trata de uma opinião, de que o meio académico se torna muito pequeno para quem teve a coragem de de lutar por construir alguma coisa a partir de uma idea…. Perante um empregador genérico, por exemplo um empregador empresarial, dificilmente se contratará alguém que montou uma empresa de biotecnologia para ser técnico de laboratório, mas para ser diretor do laboratório…(?) – não serão as competências dessa pessoa, demonstradas pela iniciativa de montar e gerir uma empresa, independentemente do seu sucesso, melhor demonstração da capacidade para assumir funções de direção do que uma série de pós-doutoramentos e artigos científicos?
– Sou novo demais ou velho demais – são ambas verdade, é-se sempre novo demais ou velho demais para alguma coisa? So what? Há uma ideia prevalente de que o empreendedorismo é coisa das novas gerações, dos milenials, e que o pessoal de meia idade ou mais velho nem percebe essa dinâmica. Esta ideia é contrariada pela evidência! Começando com exemplos, no artigo You’re never too old to start a new venture apresentam-se exemplos de empreendedores de enorme sucesso, que criaram empresas de impacto global, todos que seria considerados “velhos”. O Kaufman Index mostra que, nos Estados Unidos da América, perto de 75% dos novos empreendedores em 2015 tinham mais de 35 anos, e que cerca de metade da totalidade dos novos empreendedores tinham mais de 45 anos (aqui). Existem vários estudos que indicam que na realidade, a probabilidade de sucesso de uma nova venture aumenta com a idade e experiência do empreendedor, como é discutido por exemplo no artigo Why Great Entrepreneurs Are Older Than You Think pela Krisztina ‘Z’ Holly.
– Não tenho dinheiro – pois… a maior parte de nós não terá dinheiro para montar uma empresa de biotecnologia, mas há muito investidor por aí que tem dinheiro e gostava de encontrar ideias para investir. Conversas que tenho tido com investidores indicam que o problema deles é mesmo encontrar boas ideais de equipas credíveis, e que passam muito tempo à procura destas para investir. Estes indivíduos ou instituições apostam em ideias e equipas, fornecendo-lhes capital e apoios diversos extra contra uma percentagem da empresa, que será tanto maior quanto mais arriscado e precoce for a ideia. Para os que se preocupam de não conhecer investidores ou montar um plano de negócios, há ainda imensos programas de aceleração e incubação que incluem o contacto com investidores e ajuda na elaboração de um plano de negócios que seja investível, facilitando grandemente a vida de qualquer “biotecnologista” que queira apostar em montar a sua empresa. Para além destes investidores privados, há também grande apoio governamental à criação e crescimento de empresas inovadoras. Claro que dá imenso trabalho, claro que não é fácil, mas muitos destes apoios governamentais vêm a fundo perdido! Na minha experiência, há capital em abundância em Portugal para se iniciarem empresas – na realidade na área da biotecnologia, o problema do financiamento aparece mais tarde, quando os investimentos têm que crescer para muitos milhões, mas isso vem mais tarde, é outro tema para discutir noutro post.
– Deixamos de ter vida própria – sim, dá imenso trabalho e tem períodos que são uma complete vertigem. Exatamente como a minha vida académica! Deadlines de entregas de grant applications, períodos de revisão de artigos para re-submissão com prazos apertados, etc. Porém, conversando com amigos que trabalham em grandes empresas, no mundo corporate, dizem-me que a vida profissional deles hoje é muito semelhante, particularmente em posições com grande contacto com clientes, por exemplo apoio técnico onde os doutorados naturalmente se integrariam. Por isso embora se espere que montar uma empresa seja muito trabalho, é trabalho que fazemos para nós, e não para os outros, onde fazemos novos amigos, vemos novas realidades, e descobrimos uma maneira de estar diferente.
Em suma, baseada na minha experiência pessoal, há uma percepção muito errada por parte dos doutorandos e doutorados das ciências da vida, e esse poderá ser um fator que limita a iniciativa desta comunidade em produzir novas ideias de empresas de base biotecnológica sensu lato. Não há iniciativa de apoio ao empreendedorismo que vá resolver este problema pois tratam-se de preconceitos. Mas nenhum preconceito resiste ao contacto com a realidade, e por isso neste caso parece-me que o caminho a seguir é o de expor o nossos doutorandos e doutorados das áreas das ciências da vida a casos de pessoas que empreenderam para que se vá desmistificando esse salto profissional. Mas não basta falar dos Steve Jobs, do Mark Zucherberg ou Elon Musk – são exemplos longínquos e nos quais poucos de nós se revêm. Temos que apostar em pessoas que nesta comunidade sejam vistos como “alguém como nós” – que estudaram em Portugal, que montaram empresa em Portugal, que estudam um tema parecido com o meu, que fizeram investigação na minha universidade, qua vivem na minha cidade, etc…